Por ocasião do dia do meio ambiente, que foi no dia 05 de junho, solicitei ao amigo Antônio Aristóteles Bastos*, um texto para a data. Por contratempos, não pudemos postar o texto no dia. No entanto, como se trata de uma bela crônica, que curiosamente faz link com a derrubada da árvore de fronte ao SESC (foto), achamos por bem publicá-lo. É um texto adequado a este crime. Leiam, e vejam que maravilha esta crônica intitulada “O Grito Silencioso”. Segue:
Mais uma árvore foi morta. Estava desavisadamente no caminho dos homens. Atrapalhava seus interesses. Suas folhas sujavam a rua. Seus galhos, como braços assassinos, ameaçavam cair e matar crianças inocentes. Ameaçavam o patrimônio material do homem.
Ela apenas chegou primeiro. Apenas provia sombra. Apenas protegia das primeiras gotas de chuva. Apenas tornava seu entorno agradável e hospitaleiro. Apenas era uma referência do local, um marco urbano.
Era bonita e altiva. Dinâmica. Seu suave farfalhar concorria com o ruído do trânsito e talvez nem fosse mais ouvido. Dispensável, agora.
Era abrigo e suporte para inumeráveis animais: pássaros, besouros, lagartixas, insetos, cigarras e formigas que produziam uma silenciosa sinfonia de vida bucólica em pleno rugir urbano. Fazia parte da diversidade da vida e amenizavam a dureza da pedra e cal do homem.
Era suporte de vida. Era viva. Era.
A consciência ecológica é matéria escolar, mas não tem muito a ver com o mundo real, duro, aqui de fora. É tão abstrata quanto matemática ou física. Não há referência entre uma equação e uma operação comercial numa loja. Assim, pensa-se assim. Um erro.
O meio ambiente fica na Amazônia, no Pantanal, nas florestas russas e canadenses, na África, no Himalaia. A árvore daqui da esquina é muito modesta. Não pertence a esse universo de grandiosidade e glamour e jamais seria notícia internacional, quiçá local. Não gera interesse na mídia. Não tem valor como commodity de notícia.
Por isso, fiquei extremamente surpreso com um pequeno livrinho que tive acesso por mero acaso. O título chamou-me a atenção: “La Bête Humaine” (A Besta Humana) – de Jean Phillippe d’Oubliers. O título é homônimo da grande peça de Émile Zola (1890), que virou um filme magnífico de Jean Renoir, cineasta e filho do famoso pintor (Pierre-Auguste).
Acendeu-me a curiosidade: quem copiou quem? Quedei-me estupefato! A obra era de 1262! O autor, um francês de Le Havre, na França, coincidentemente a localidade da obra de Zola, que desenvolve a história na linha do trem entre Paris e Havre.
Contemporâneo de São Tomás de Aquino, Jean era, ao contrário, ateu, nobre, rico, materialista e hedonista. Entretanto, seu humanismo era tão forte que beirava o fanatismo religioso, ao ponto de ser difícil distinguir entre as duas abordagens de partidas tão diferentes. Era uma apaixonado pela vida. Todas elas! Era tão obcecado pelo prazer (la joie de vivre!), que beirava o paroxismo, numa época em que o ascetismo e o sofrimento eram bilhetes de entrada para o céu.
Essas coincidências todas acenderam-me a curiosidade e comecei, em pé mesmo, a folhear freneticamente. Estava tão concentrado que, se caísse uma árvore ao meu lado, eu sequer veria. Que risco eu corri!
O que me chamou a atenção foi uma pequena pérola achada no meio do texto, escrito numa época tão remota, na qual seria impensável haver consciência ecológica. Coincidência? Premonição?
Tratava da violência do homem, gratuita, fortuita, sem propósito nem lucro. Em particular, sobre os mais fracos, o que era de se esperar: “… os pobres, os fracos, os doentes, os velhos, as crianças, os animais, os estrangeiros, os de coração singelo, a quem trata como se fossem uma árvore que se pode desgalhar, cortar, podar, derrubar e matar impunemente.
Entretanto, as árvores são úteis, têm frutos, sombra, vida. Assim como os desfavorecidos, mas não pobres de espírito, não esquecidos de Deus, como diria meu pároco, do qual divirjo e duvido. São úteis, ao menos para nos fazer sentir fortes, superiores e saber dar valor ao calor de uma lareira no inverno rigoroso das vaidades humanas.
Um dia fomos ou seremos fracos. Nossa situação é provisória. Nossa vida, provisória. Nós a tomamos emprestada e teremos que devolvê-la. Nunca seremos fortes o bastante para sermos soberbos. A cada esquina há uma volta, mas não sabemos o fim do caminho.
Uma árvore é uma árvore, apenas. Não se lhe conhece a função. Tanto prazer nos dá, que nos damos ao direito de destruí-la quando não nos interessa mais. Como a amante inconveniente que internamos num manicômio.
A vida somente será justa quando proteger e preservar os desprovidos da sociedade e da fortuna, bem como as árvores…” (sic)
Parei de ler. Fiquei olhando, sem entender, durante algum tempo para esse último parágrafo. Durante séculos, essa ligação com a natureza não foi considerada. Era apenas o homem, logo abaixo de Deus, acima de todas as outras coisas, providas para seu deleite e usufruto, como dizia a Bíblia.
Sob uma ótica moderna, esse modesto autor, do qual não consegui achar referências na poderosa internet (seria um pseudônimo para proteger sua família poderosa?), trata de questões que apenas recentemente passaram a ser consideradas. Um visionário, ou talvez fosse uma metáfora que ganhou significado apenas no limiar do fim da espécie humana?
*Antônio Aristóteles Bastos é arquiteto, escritor e editor. Reside em Garanhuns.
Mais uma árvore foi morta. Estava desavisadamente no caminho dos homens. Atrapalhava seus interesses. Suas folhas sujavam a rua. Seus galhos, como braços assassinos, ameaçavam cair e matar crianças inocentes. Ameaçavam o patrimônio material do homem.
Ela apenas chegou primeiro. Apenas provia sombra. Apenas protegia das primeiras gotas de chuva. Apenas tornava seu entorno agradável e hospitaleiro. Apenas era uma referência do local, um marco urbano.
Era bonita e altiva. Dinâmica. Seu suave farfalhar concorria com o ruído do trânsito e talvez nem fosse mais ouvido. Dispensável, agora.
Era abrigo e suporte para inumeráveis animais: pássaros, besouros, lagartixas, insetos, cigarras e formigas que produziam uma silenciosa sinfonia de vida bucólica em pleno rugir urbano. Fazia parte da diversidade da vida e amenizavam a dureza da pedra e cal do homem.
Era suporte de vida. Era viva. Era.
A consciência ecológica é matéria escolar, mas não tem muito a ver com o mundo real, duro, aqui de fora. É tão abstrata quanto matemática ou física. Não há referência entre uma equação e uma operação comercial numa loja. Assim, pensa-se assim. Um erro.
O meio ambiente fica na Amazônia, no Pantanal, nas florestas russas e canadenses, na África, no Himalaia. A árvore daqui da esquina é muito modesta. Não pertence a esse universo de grandiosidade e glamour e jamais seria notícia internacional, quiçá local. Não gera interesse na mídia. Não tem valor como commodity de notícia.
Por isso, fiquei extremamente surpreso com um pequeno livrinho que tive acesso por mero acaso. O título chamou-me a atenção: “La Bête Humaine” (A Besta Humana) – de Jean Phillippe d’Oubliers. O título é homônimo da grande peça de Émile Zola (1890), que virou um filme magnífico de Jean Renoir, cineasta e filho do famoso pintor (Pierre-Auguste).
Acendeu-me a curiosidade: quem copiou quem? Quedei-me estupefato! A obra era de 1262! O autor, um francês de Le Havre, na França, coincidentemente a localidade da obra de Zola, que desenvolve a história na linha do trem entre Paris e Havre.
Contemporâneo de São Tomás de Aquino, Jean era, ao contrário, ateu, nobre, rico, materialista e hedonista. Entretanto, seu humanismo era tão forte que beirava o fanatismo religioso, ao ponto de ser difícil distinguir entre as duas abordagens de partidas tão diferentes. Era uma apaixonado pela vida. Todas elas! Era tão obcecado pelo prazer (la joie de vivre!), que beirava o paroxismo, numa época em que o ascetismo e o sofrimento eram bilhetes de entrada para o céu.
Essas coincidências todas acenderam-me a curiosidade e comecei, em pé mesmo, a folhear freneticamente. Estava tão concentrado que, se caísse uma árvore ao meu lado, eu sequer veria. Que risco eu corri!
O que me chamou a atenção foi uma pequena pérola achada no meio do texto, escrito numa época tão remota, na qual seria impensável haver consciência ecológica. Coincidência? Premonição?
Tratava da violência do homem, gratuita, fortuita, sem propósito nem lucro. Em particular, sobre os mais fracos, o que era de se esperar: “… os pobres, os fracos, os doentes, os velhos, as crianças, os animais, os estrangeiros, os de coração singelo, a quem trata como se fossem uma árvore que se pode desgalhar, cortar, podar, derrubar e matar impunemente.
Entretanto, as árvores são úteis, têm frutos, sombra, vida. Assim como os desfavorecidos, mas não pobres de espírito, não esquecidos de Deus, como diria meu pároco, do qual divirjo e duvido. São úteis, ao menos para nos fazer sentir fortes, superiores e saber dar valor ao calor de uma lareira no inverno rigoroso das vaidades humanas.
Um dia fomos ou seremos fracos. Nossa situação é provisória. Nossa vida, provisória. Nós a tomamos emprestada e teremos que devolvê-la. Nunca seremos fortes o bastante para sermos soberbos. A cada esquina há uma volta, mas não sabemos o fim do caminho.
Uma árvore é uma árvore, apenas. Não se lhe conhece a função. Tanto prazer nos dá, que nos damos ao direito de destruí-la quando não nos interessa mais. Como a amante inconveniente que internamos num manicômio.
A vida somente será justa quando proteger e preservar os desprovidos da sociedade e da fortuna, bem como as árvores…” (sic)
Parei de ler. Fiquei olhando, sem entender, durante algum tempo para esse último parágrafo. Durante séculos, essa ligação com a natureza não foi considerada. Era apenas o homem, logo abaixo de Deus, acima de todas as outras coisas, providas para seu deleite e usufruto, como dizia a Bíblia.
Sob uma ótica moderna, esse modesto autor, do qual não consegui achar referências na poderosa internet (seria um pseudônimo para proteger sua família poderosa?), trata de questões que apenas recentemente passaram a ser consideradas. Um visionário, ou talvez fosse uma metáfora que ganhou significado apenas no limiar do fim da espécie humana?
*Antônio Aristóteles Bastos é arquiteto, escritor e editor. Reside em Garanhuns.
Sem dúvida um belo texto, pela temática tocante e linguagem fluente. Parabéns ao Aristóteles.
ResponderExcluirUm abraço.
M A R A V I L H A! Sem sombra de dúvidas um texto para ser elogiado, lido e relido.
ResponderExcluirParabéns!
Antônio Aristóteles Bastos, parabens pelo texto, sen dúvidas um ótimo texto, e parabens ao blog por ter postado na íntegra.
ResponderExcluir